quarta-feira, 17 de junho de 2009

Da frigideira para o motor

Por Marcela Valente*



Buenos Aires, 15 de junho (IPS/IFEJ) – Um município argentino pôs em marcha um programa que obriga os restaurantes e outros estabelecimentos que servem refeições a entregar o óleo comestível usado para destilar biodiesel, que será utilizado em veículos da municipalidade e do transporte público. “Conseguimos evitar que o óleo usado vá para o esgoto e contamine a água, economizamos em combustível, criamos consciência ecológica e damos um projeto a um povo destinado a morrer”, sintetiza Martín Issin, subsecretário de Produção da prefeitura de Necochea e encarregado do Programa de Biodiesel que controla a coleta, produção e consumo deste combustível renovável.

A cidade turística de Necochea, na costa do Oceano Atlântico, é a principal do distrito homônimo, situado 500 quilômetros a sudeste da capital argentina, na província de Buenos Aires. No verão recebe muitos visitantes e abriga mais de 80% da população permanente do distrito, de cerca de cem mil habitantes. Não é ela a “destinada a morrer”, mas o povoado de Ramón Santamarina, a 65 quilômetros . Seu despovoamento que não para teria induzido as autoridades a pensarem em trasladar para lá a Escola Agropecuária. Mas foi a Escola o lugar escolhido para instalar a processadora municipal de biodiesel, o que reanimou a vida e a atividade de Ramón Santamarina. “Por isso dizemos que este projeto permite resgatar potencialidades produtivas e reter a população rural”, disse Issin.

A Argentina é o terceiro produtor mundial de biodiesel, depois da Alemanha e dos Estados Unidos, com mais de 1,4 milhões de toneladas anuais. Contudo, a produção está concentrada em poucas empresas dedicadas a exportar e não a atender a demanda interna, que vai aumentar a partir de 2010. A lei de biocombustíveis, sancionada em 2006, determina que, a partir do próximo ano, o combustível para motores diesel deve ter mistura de pelo menos 5% de biodiesel, cuja queima emite menos gases de efeito estufa. Porém, especialistas temem que a lei não possa ser cumprida porque os produtores de biodiesel preferem o mercado externo, que é mais lucrativo.

Desde que Necochea iniciou o Programa de Biodiesel, em 2004, até o ano passado, a coleta de óleo vegetal usado passou de 7,4 para 94,8 toneladas anuais. “A coleta está em permanente aumento”, comemorou Issin. O município decretou, em 2004, que todos os estabelecimentos que vendem comida devem se registrar como fornecedores de óleos vegetais usados e solicitar a retirada desses resíduos, em troca de uma identificação que colocam em suas fachadas para destacar o cumprimento. Hotéis, restaurantes e fábricas podem ser inspecionados e multados pela Direção de Obras Sanitárias, que inspeciona o despejo de resíduos. A adesão de particulares é voluntária.

O programa conta com 700 empresas fornecedoras que trabalham o ano todo e outras três mil que funcionam no verão. O óleo é recolhido por um veículo do município, que funciona apenas com biodiesel. As autoridades decidiram incluir no esquema o aproveitamento de vasilhames de produtos agroquímicos, considerados muito contaminantes. Cada um deve ser submetido a tripla lavagem antes de ser usado como recipiente para o óleo dos restaurantes.

“Estamos abertos o ano todo, mas é no verão que trabalhamos mais e temos de pedir mais vasilhames porque temos de 80 a cem litros de óleo por semana”, contou ao Terramérica Maria Isabel García, proprietária do restaurante La Taberna Española. “É um sucesso. Em Necochea há carros de aluguel que utilizam biodiesel”, acrescentou. Gustavo Aguirre , gerente do restaurante Hereford, comentou que o plano “é uma solução e uma comodidade. O município manda os vasilhames e vem retirar. Isso favorece porque não temos de buscar e levar”, afirmou.

O óleo é levado até a processadora em Rampon Santamarina, onde fica armazenado em um tanque para lavagem. Os restos orgânicos se destinam à minhocultura. O fluido passa por uma bateia de filtragem para livrá-lo de impurezas, até chegar ao tanque de decantação, onde é aquecido e a água é retirada. Uma vez destilado, com metanol e soda cáustica, o biodiesel é separado do glicerol, subproduto que pode servir de matéria-prima para a produção de sabão, segundo Issin. Na mesma Escola Agropecuária, foi instalado o único fornecedor de combustível do povoado, que abastece os veículos escolares e municipais e automóveis particulares.

“Estamos na categoria de autoconsumo porque o volume não permite que seja vendido. Mas economizamos com combustível em nossa frota”, explicou Issin. O parque automotivo local tem 70 unidades, que funcionam com misturas que vão de 50% a 100% de biodiesel. Duas unidades da Companhia de Ônibus de Necochea testaram, durante seis meses, uma mistura de 20% de biodiesel, com resultados “excelentes”, segundo o funcionário. A Subsecretaria de Produção apresentou o programa ao Fundo Argentino de Carbono, administrado pela Secretaria de Meio Ambiente nacional, que facilita investimentos em eficiência energética e adoção de fontes renováveis.

Com a certificação do Fundo, o programa pode ter acesso a financiamento no contexto do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo previsto no Protocolo de Kyoto sobre mudança climática, para mitigar a geração de gases como o dióxido de carbono, que aquece a atmosfera. Assim, poderia ser ampliada a capacidade da unidade, que emprega cinco pessoas. A experiência pioneira levou o governo da província de Buenos Aires a implantar, em 2007, o Plan Bio, pelo qual cerca de 20 organizações não-governamentais cuidam de recolher, gratuitamente, o óleo usado e vendê-lo às refinarias privadas a preço de mercado. A renda obtida é usada pra financiar trabalhos sociais dessas entidades.


* Este artigo é parte de uma série produzida pela IPS (Inter Press Service) e pela IFEJ (Federação Internacional de Jornalistas Ambientais) para a Aliança de Comunicadores para o Desenvolvimento Sustentável (www.complusalliance.org).

Crédito da imagem: Gentileza Municipalidade de Necochea
Legenda: Identidade visual do Programa de Biodiesel de Necochea, na Argentina.

LINKS
Municipalidade de Necocheahttp://www.necochea.gov.ar
Fundo Argentino de Carbonohttp://www.ambiente.gov.ar/?idseccion=111
Biodiesel aceita inclusão social, em espanhol http://www.tierramerica.net/2006/1028/noticias3.shtml
Biodiesel iluminará comunidades amazônicas, em espanhol http://ipsnoticias.net/nota.asp?idnews=89251
Biodiesel se mescla com guerra, em espanhol
http://ipsnoticias.net/nota.asp?idnews=39535

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.

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